Como é ser veterinário nos EUA

A estrada foi longa para Dr João Felipe de Brito Galvão: hoje especialista em medicina interna no VCA Arboretum View Animal Hospital, no estado de Illinois, EUA, o veterinário brasileiro ingressou no mercado americano com uma bolsa de estudos de apenas um semestre, que se desdobrou em estágios, depois em um ano clínico, em seguida, um internato e, por fim, uma residência. A jornada para a especialização foi difícil e, nesta entrevista, Dr João Felipe conta por que as infinitas noites dormidas num sofá de dois lugares valeram a pena.

 

 

Dr João, muitos médicos veterinários no Brasil têm o sonho de estudar e ainda trabalhar nos EUA. Você poderia nos contar como foi sua decisão de ir estudar fora?

Tudo começou quando fui visitar um amigo de infância em West Lafayette, Indiana. Quando criança, morei três anos nos EUA. Após seis anos no Brasil, voltei aos EUA para rever amigos. O pai de um dos meus amigos era professor da veterinária na Universidade de Purdue. Quando soube que eu era estudante de veterinária, me convidou para conhecer a universidade e assistir a algumas aulas, e lá acabei ficando por dois meses.

Essa experiência mudou a minha perspectiva sobre a veterinária. O que mais me impressionou foi a relação de respeito mútuo entre professores e alunos. Acontece que, nos EUA, alunos de veterinária tendem a ser mais velhos, já que o curso é de pós-graduação. Com isso, antes de ingressarem na veterinária, os alunos já cursaram quatro anos de faculdade. No mais, nos EUA, há apenas 32 escolas de veterinária, o que implica um processo seletivo rigoroso para admissão de novos alunos. No geral, há menos veterinários formados nos EUA que no Brasil.

Bom, depois dessa experiência, retornei ao Brasil decidido a levar o curso mais a sério. Apliquei para o programa Capes-Fipse e ganhei uma bolsa de estudos de um semestre na Texas A&M University. Após um rodízio de duas semanas com Mike Willard, veterinário especialista em medicina interna, descobri a minha paixão: também gostaria de ser um especialista em medicina interna. Adiei a minha formatura no Brasil e me submeti a um sistema de rodízio para intensificar a minha exposição a diferentes especialidades.

Formado, apliquei para a residência médica a fim de aumentar meu contato com pequenos animais. Fiz estágio na Universidade de Wisconsin e, em seguida, entrei com o pedido de revalidação do meu diploma — programa ECFVG: Educational Commission for Foreign Veterinary Graduates. Eu só poderia me inscrever em programas de internato e, posteriormente, residência, se tivesse licença para trabalhar como veterinário.

 


Quais foram seus maiores medos na época e o que pesou mais para sua decisão?

Tinha medo de não me sobressair. Se não me sobressaísse, não conseguiria um programa de internato. Sem internato, não há como aplicar para o programa de residência. Nesse meio-tempo, tive que pedir um empréstimo de U$28.000 para pagar a anuidade da universidade no programa de ano clinico. Sabia que, se tivesse que voltar para o Brasil com essa dívida, ficaria difícil quitá-la com o salário do veterinário recém-formado.

Embora houvesse o medo do fracasso, sabia que esse era meu sonho. Havia me preparado por 5 anos e não iria desistir agora. Às vezes penso no passado e acho que eu estava tão determinado em me tornar um especialista em medicina interna, que não pensei em tudo de que estava abrindo mão ao vir para os EUA. Não pensei nos amigos, na família ou no estilo de vida que estava deixando para trás. Só fui realmente perceber o que deixei após ter terminado a residência e me tornado especialista.

 

Fazer uma residência e passar nas provas de certificação do ACVIM exigem muito esforço e dedicação. Como foi essa experiência para você?

Fazer residência exigiu uma dedicação muito grande. Embora o período mais difícil tenha sido os anos que a precederam. Foi quando tive me adaptar culturalmente. A residência aconteceu após dois anos de EUA.

Eu já estava acostumado a estudar dia e noite. Me lembro que, durante boa parte da residência, dormi num sofá de dois lugares. Quando o pescoço doía, acordava e estudava mais um pouco. A minha fome de aprender e o sonho de se tornar um especialista eram tão grandes, que não acho que foi um esforço, eu amava o que fazia.

Mas hoje conto as desvantagens: nesse período, minha vida ficou parada, me desliguei de tudo e todos. É preciso muita dedicação para passar na prova da ACVIM. O conteúdo abarca os últimos dez anos da literatura sobre medicina interna.  

 

Dr João Felipe: “Embora houvesse o medo do fracasso, sabia que esse era meu sonho. Havia me preparado por 5 anos e não iria desistir agora”.

 

Estamos começando a lidar com uma nova geração conectada e globalizada, mas por outro lado, imediatista e insubordinada. Como você vê esses estudantes encarando todo esse processo de treinamento e especialização por aí?  

Essa é uma pergunta interessante, pois sinto que estamos passando por um momento de transição. Na minha época, era comum você ser humilhado durante o internato e residência. Essa humilhação não era pessoal, mas sim uma forma de te estimular a estudar mais. Hoje em dia, isso tem se tornado mais difícil pois as gerações mais novas ficam muito ofendidas e reagem. Com isso, fica mais difícil de treiná-los. Não tenho certeza de como será o futuro, mas a ideia de uma vida mais equilibrada entre o pessoal e o profissional fará desses veterinários menos capacitados do que aqueles do passado. Por outro lado, pessoas que não se sujeitam a aprender sob pressão provavelmente se darão melhor.

 

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Para complicar um pouco mais a pergunta, como você vê o processo de especialização veterinária no Brasil?  O que precisamos fazer para melhorar?

Sinto que as coisas estão mudando no Brasil. Sou parte do comitê da prova de especialização em clínica de pequenos animais da Anclivepa. Todos os membros do comitê são especialistas certificados pelos colégios americanos em diversas especialidades. Com isso, estamos tentando trazer o mesmo nível norte-americano para o Brasil.

É um começo, mas sinto ainda que o treinamento em residências precisa continuar crescendo. Uma das grandes diferenças entre os clínicos americanos e brasileiros é que, nos EUA, não se dá valor a mestrado ou doutorado, a não ser que se vá fazer pesquisa. A maior parte dos professores da clínica não tem mestrado ou doutorado, são apenas especialistas em suas áreas. Para se tornar especialista, são necessários um ano de internato e três anos de residência. Após a residência, é preciso passar na prova do respectivo colégio. Gostaria muito que trouxéssemos esse modelo para o Brasil. Na Europa, governos de vários países subsidiaram programas de residência para que as pessoas, ao retornar a seus países de origem, fundassem colégios de especialidade. Tal medida foi a grande responsável pelo crescimento de especialidades na Europa. Precisamos criar uma cultura de ensino de clínica para o bem das futuras gerações.

 

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Que dicas você daria para um estudante de medicina veterinária que tem vontade de se diplomar nos EUA?

Faça estágio nos EUA para saber se é isso mesmo que você quer;

Planeje: avalie onde está o seu conhecimento e do que mais você precisa para se tornar competitivo;

Aprenda inglês: a fluência na língua é extremamente importante, já que o que mais fazemos e nos comunicar;

Entenda as abreviações: a comunicação se torna mais eficaz quando você domina as abreviações;

Não tente cortar caminho. É preciso revalidar o diploma pelo programa do ECFVG (veja o site: www.avma.org/ecfvg). Recomendo também fazer o ano clínico, mesmo que não seja necessário. Esse ano lhe dará a medida do que é a medicina veterinária nos EUA. Esse foi o dinheiro mais bem gasto da minha vida, aqui nos EUA;

Se for se especializar, você precisa fazer o ano clínico e se sair muito bem, já que cartas de recomendação são extremamente importantes. Notas na faculdade importam também.

Saindo-se bem no ano clínico, provavelmente conseguirá um internato e, sendo bem-sucedido nele, provavelmente conseguirá uma residência.

Lembre-se que esse é um plano de longo prazo e tenha certeza de que é isso que você quer.

 

Obrigado, Dr João.

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